“A beleza é enganosa, e a formosura é passageira; mas a mulher que teme ao Senhor será elogiada.”
Provérbios 31:30
– I love you! — dizia ele com os olhos quase cerrados, como se estivesse defronte a um sol forte, e com os lábios proeminentes em minha direção.
Meia hora antes
Eu estava em Botswana, um pequeno país com cerca de 2 milhões de habitantes na fronteira norte da África do Sul. Banhado em diamantes, a população é rica, embora com pena de morte decretada pela Aids.
A expectativa média de vida vai dos 45 aos 50 anos e é muito se comparada à do Malawi, país onde eu estava antes, que tem dez anos a menos.
A diferença é a alimentação. Como há dinheiro, comem mais e, mesmo magros pela doença autoimune, há um pouco mais de adiposidade corporal que no país anterior, onde não há nenhuma. O fato é que a magreza predomina, ainda que não seja o desejo desse povo.
Lá estava eu para a gravação de um documentário sobre trabalho missionário voluntário que foi ao ar no meu programa na Novo Tempo e queria registrar a vida e o cotidiano de um casal argentino que deixou seu país assim que casou para trabalhar como médicos lá.
Ali eles praticavam o que em países mais desenvolvidos se resume a olhar e fazer pequenos curativos. Na carência total de saúde e de médicos, muitos países africanos permitem que esses alunos pratiquem o que aprenderam na faculdade, ainda que muitas vezes os pacientes sejam cobaias. O favor que eles fazem à comunidade é enorme, pois todos os médicos vêm de fora e não existem muitos dispostos a isso.
Era sábado de manhã e iríamos para a igreja naquele dia, portanto resolvi me levantar mais cedo que os missionários e meu cinegrafista e fui sozinha tomar o desjejum na cozinha do hospital, como fizera nos outros dias. A comida que os funcionários e convidados comiam era a mesma dos pacientes. Ótima, por sinal.
Embora sem saúde – oficialmente, metade da população tem o vírus HIV -, o país dispunha de dinheiro para manter um ótimo hospital e “sustentar” os missionários.
Gianinna, a estudante missionária, e eu éramos as únicas mulheres brancas na cidade do Kanye naqueles dias. Mas eu só tomaria conhecimento do impacto disso naquele momento.
Depois de me servir, o chef da cozinha sentou-se à minha frente – sem ser convidado! – e fitou-me demoradamente. Incomodada, mas não intimidada, olhei em torno e perguntei se havia algo errado.
— Yes, I’m falling in love (Sim, eu estou apaixonado.) — esboçou com olhos quase lacrimejantes.
Já imaginando em que isso daria, nem perguntei por quem, mas ele não queria mesmo perguntas. Queria uma resposta.
— Marry me? (Casa comigo?)
Hã?! Ainda pensei que pudesse não estar entendendo o inglês carregado dos africanos, mas ele não deixou espaço para dúvidas.
— I love you! (Eu te amo!)
Primeiro respirei fundo. Não queria cair na gargalhada ali, sem nenhuma consideração pelos sentimentos alheios, mas também não queria bancar a boba de acreditar naquela declaração insólita – pra dizer o mínimo! Disse a ele que não era possível estar apaixonado por mim e menos ainda me amar, pois ele me conhecia há uma semana apenas.
Ele então confessou que me espreitava todos os dias durante seu trabalho, nas refeições, enquanto eu conversava com o pessoal do hospital, e estava só esperando uma chance de me encontrar sozinha.
Disse também que naquele curto período de tempo tinha certeza do amor que sentia por mim. Quase ri de novo.
Expliquei que não podia me casar com ele, pois já era casada, mas ele não se importou com isso. Nem um pouco, aliás. Embora a bigamia não seja oficial, é aceitável e bem praticada em vários países africanos. Até hoje não sei se também em Botswana, mas, pelo andar da carruagem, chocante é que não deveria ser.
Ele insistia em segurar e alisar minha mão, que insistentemente eu retirava. Aquilo estava me incomodando mais que o habitual.
Falei que, se ele achava normal ter dois maridos, eu não achava, e que isso era crime no meu país.
Ele parecia não me ouvir.
Então se rendeu ao cúmulo: “Olha, sei que você já tem o seu marido branco, mas não me importo. Deixe-me apenas te amar. Eu vou para o Brasil e fico lá, só pra viver junto com você. Não precisa se separar do homem branco”.
Oi?
Falei que não, não podia, era impossível e que sentia muito, mas então ele insistiu em me dar um beijo. Imagine a cena. Ele agarrando uma das minhas mãos e eu puxando de volta enquanto afastava o corpo. Ele vindo na minha direção com o beicinho a postos para uma bitoca, até que chegou o casal de missionários e deu uma corrida no cidadão, ameaçando chamar a polícia. Ufa!
Mas ele não deu trégua. Ficava atrás de uma coluna enquanto comíamos e me enviava beijos apaixonados, às vezes com o auxílio das mãos, soprando para chegar mais longe.
O que veio a seguir é que me deixou estupefata! O missionário explicou-me então o fascínio que eu exercia sobre o pobre moço. Num país de negros e numa cidade onde pouco se viam brancos, dominada pela Aids e com habitantes tão delgados, eu e meus dez oportunistas quilos extras éramos a sensação.
Sim, branca e gorda! Eu era o ideal de purificação e fartura que eles tanto almejavam. Fiquei pasma! Todos me olhavam, uns chegavam perto para tocar meus cabelos maltratados pelo sol e achavam tudo “legal”.
No Malawi, por exemplo, me pararam na rua durante uma caminhada para me tocar e cheirar minha pele.
Riam e diziam coisas que eu não entendia, já que não tive o privilégio de aprender chichewa. Mas pareciam gostar do que viam e sentiam. Ótimo para a autoestima, tenho que confessar.
E eu, que andava às turras com minha imagem, com meu peso, me descubro ali, me amando, me gostando. O que não faz a opinião pública a nosso respeito?
Que padrões são esses que me fazem feia no meu país e uma deusa naqueles recônditos africanos?
Quem foi que disse o que é belo e feio?
Outro dia, li uma pesquisa que afirmava estar a beleza na simetria perfeita. Sim, um rosto é belo, segundo esses estudiosos – que aposto serem barrigudos feios! -, se tiver as duas metades da face da mesma forma, do mesmo tamanho e da mesma proporção.
Daí descubro que rostinhos feios estão por aí atendendo por Angelina Jolie, por exemplo.
Alguém avisa para a moça que ela é “cientificamente feia “, por favor? Obrigada.
A magreza doentiamente cultuada hoje, por exemplo, já foi sinônimo de decadência e pobreza. Sim, caríssima leitora!
Botticelli, o pintor florentino que fez sucesso no século XV, que o diga. Pois magras mesmo eram as mulheres que tinham que trabalhar duro, ou seja, as pobres, coisa horrorosa naqueles dias.
O prestígio era medido pelas voluptuosas dobras que sobravam na cintura, nas coxas, nos braços. Às vezes até me imagino naquele tempo e penso: “Uau, eu seria praticamente uma desnutrida”. Pode funcionar por alguns segundos de felicidade.
Também não consigo evitar pensar no sofrimento das ricas com tendência a emagrecer. Imagine só! Todo o dinheiro e toda a comida do mundo e as amigas roliças comentando na festa:
— Que magricela! Parece uma trabalhadora braçal.
Olha só pra ela, nem tem banha sobrando na barriga para encher adequadamente o cetim do vestido! — desdenharia uma.
— E os braços, então! Finos, delineados, sem nenhum balanço quando nos acena! — emendaria outra.
— Sem falar nos seios! Olhe como cabem perfeitamente dentro do bojo! Nem com espartilho saltariam volumosos como os nossos! — E cairiam todas na risada malvada.
Talvez a parte do seio ainda hoje se aplique, pois há uma década o silicone viu seus dias de glória chegarem, saindo das oficinas para a sala de estar, para o quarto e para a área de serviço da diarista que dividiu sua prótese em 36 meses de pagamento.
Outro dia, vi uma reportagem sobre uma das maiores fábricas de prótese do Brasil e o rico faturamento desse segmento que segue a máxima ditada pela publicidade, a qual nos manda ser infelizes com nossos peitos e a curar a infelicidade com uma bolinha de gel ou ar.
Tenho uma amiga que tinha lindos seios grandes, levemente caídos como são os peitos de verdade, ainda mais depois de amamentar seus três fofos bebês. Tirou tudo, com o sonho de ter menos peito, para gastar uma fortuna enchendo tudo de novo um ano depois.