“Sabemos também que o Filho de Deus veio e nos deu entendimento, para que conheçamos aquele que é o Verdadeiro. E nós estamos naquele que é o Verdadeiro, em seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna. Filhinhos, guardem-se dos ídolos.”
1 João 5:20-21
Somos todos tentados a criar mitos.
Eles servem para satisfazer nossa necessidade de ter alguém para admirar, alguém para seguir e dar sentido às nossas causas – ainda que sejam só no singular mesmo.
Tiradentes é um belo exemplo.
Batizado como Joaquim José da Silva Xavier, ele é o motivo do nosso feriado de 21 de abril.
Sua história nos é contada na escola e é facilmente esquecida com o passar dos anos, pois, se eu perguntar de supetão o que foi que ele fez, quando e onde, muito provavelmente você titubeie em uma ou em todas as questões.
Tudo bem, ninguém é obrigado a saber tudo, afinal.
Mas esse cara aí, mineiro, que trabalhou de tudo um pouco, incluindo de militar e dentista – o que lhe rendeu o apelido de Tiradentes, pela obviedade da atribuição -, virou herói nacional em 1889, tornando-se símbolo de liberdade, da república e da independência de Portugal.
Seus cabelos e barbas longos, sua figura esquálida e cristianizada era mesmo a pintura perfeita do herói que se buscava para nossa frágil e pobre república ainda em construção, sem grandes heróis de fato.
E Tiradentes? Bem, ele não era nada disso.
Dada sua patente e os costumes da época ao se prender alguém, ele, na verdade, estava com cabeça e barba raspadas, possuía escravos, não tinha noção de “país” e fez parte de uma reivindicação elitista, na qual um grupo de senhores resolveu que não queria mais pagar tantos impostos para a Coroa Portuguesa.
Dos seis condenados à morte na chamada Inconfidência Mineira, só Tiradentes morreu – enforcado e esquartejado -, enquanto os outros, ricos, melhor relacionados, foram deportados. Curioso, não?!
Como não tinha padrinhos, nem posses, nem grande prestígio, Tiradentes morreu assim, e muita gente ficou sabendo.
Daí, um século depois, carente de símbolos e heróis, os homens que se juntaram para “pintar” nossa construção da república deram uma mão de tinta nesse personagem para transformá-lo no mito que se estampou nos livros escolares.
Fizeram isso com a nossa história e, embora você não esteja muito interessado, e só saiba do nome dele por causa do feriado – que você torce para cair numa terça ou quinta-feira, para emendar -, eu precisava lhe contar como é fácil criar mitos no nosso cotidiano.
Mais fácil ainda é idealizar a vida, ou se frustrar com ela, baseados nos mitos que criamos e sobre os quais não nos interessamos em saber a verdade.
Talvez, na maioria das vezes, a verdade seja simples demais, sem graça demais, banal demais.
Eu estava falando sobre isso outro dia com uma amiga decepcionada com o namorado, um homem vinte anos mais velho, dominador, manipulador e que fez dela uma refém psicológica por cinco meses.
Não adiantava alertá-la, dizer o quanto ela se submetia, o quanto aquilo se configurava como sequestro emocional, o quanto ela havia se isolado do mundo, da família, dos amigos e de si mesma.
Não adiantava dizer que o cara estava roubando sua personalidade e que ela nunca tinha gostado de tomates ou de ser loira – coisas que, agora, tinham se tornado quase sua obsessão.
O discurso era: “Me deixem em paz, achei alguém que me ama e vai cuidar de mim”.
Foi preciso uma intervenção médica, o diagnóstico de depressão e de síndrome do pânico para a ficha começar a cair. Começar, enfatizo.
Órfã de pai, com uma infância sem a atenção da mãe, com surras frequentes do padrasto, sem recursos financeiros e sem muitas perspectivas, achar um cara mais velho que paga sua faculdade, a leva em casa toda noite e diz que vai protegê-la do mundo é quase como achar o pai que sempre sonhou e nunca teve de fato.
O mito do par perfeito a fez ignorar o fato de que seria difícil pra caramba conviver com uma ex-mulher obsessiva, com dois filhos adolescentes e maquiavélicos e com surtos de violência quando seu namorado era contrariado.
Ela criou seu mito e queria crer nele, ainda que fosse uma construção imaginária.
Do mesmo jeito acontece também a versão inversa, ou seja, quando a pessoa é do bem, bem-intencionada, cheia de qualidades, vantagens e outros predicados, mas insistimos em ver só os defeitos, as mazelas, em associá-la a ícones maléficos, em transformá-la num personagem talhado de vilão.
Assim destruímos uma amizade, um casamento, uma relação profissional ou mesmo abandonamos a fé.
Afinal, tem disso também, né?!
Tem gente que cria o mito do crente perfeito, do cristão padrão e acha mesmo que só o fato de ele ir a uma igreja ou doar cestas básicas ao orfanato da cidade qualifica sua religião, seus valores, sua fé.
Daí o mito se desfaz e, com ele, a figura real de Cristo, construída sobre alguém desconstruído.
Dureza essa vida de realidades mais simples enquanto desejamos mitos mirabolantes, né?!
Estou aqui pensando nos meus mitos ridículos, naqueles que me foram dados prontos e noutros tantos que criei para me satisfazer, para me dar respostas que nunca fui capaz de achar, para reparar buracos que foram feitos por uma razão.
Alguns eu até consigo desmanchar, outros são fortes demais para demolir. E os seus, seguirão assim, existindo?